Da taberna concelhil aos centros sociais

Carlos C. Varela

A fins dos 80, quando o antropólogo Manuel Mandianes fazia trabalho de campo na sua paróquia natal de Loureses, nos Brancos, o concelho aberto continuava a ser umha instituiçom viva de democracia paroquial. As assembleias faziam-se na encruzilhada ou se chovia no forno comunal mas, queixava-se-lhe um vizinho, “ultimamente juntam-se no bar, mas isso nom está bem. Há que reunir-se na encruzilhada. A encruzilhada é de todos e todo o mundo tem mais liberdade de expressar-se”. No concelho aberto participava umha pessoa por casa, e a representaçom era quase sempre masculina, nom sendo que o homem estivesse ausente por mor da guerra ou a emigraçom; assim, reuni-lo no bar era também masculinizá-lo ainda mais. Tampouco participavam os mendigos, fora de toda reciprocidade –embora fossem alimentados polo povo- e carentes mesmo de um espaço de seu: “O pobre nem vai ao concelho nem se toma o seu conselho”. “Som tantos –denunciava Rosalia- os coitados a quem nas nossas aldeias nom se lhes oferece a prova do porco, e que sonham com o dia em que (…) podam dizer aos seus avaros vizinhos: Adiante com o varal…!”.

Mas voltemos ao âmbito tabernário. Parece que antes de a taberna aparecer como um problema, um embrutecedor –como gostavam de dizer os militantes de esquerda- disolvente das instituiçons populares, foi a própria um espaço comunitário que bem pode recordar aos nossos centros sociais de hoje. Conta Pegerto Saavedra que “ao lado da igreja achava-se a taberna concelhil na que finalizada a missa, os moços e outros que nom eran tanto cumpriam gostosos com o preceito dominical”; às vezes após a assembleia no adro, onde se encontrava a vizinhança “sem objecto algum de particular –prossegue Otero Pedraio-, mais que o sentimento de se confirmarem e fortalecerem como membros activos da paróquia, pousar na rude e isolada vida para decatarem-se de que som, que existem no mundo e na história”. No curso de séc. XVII a taberna paroquial começou a ser arrendada, com objecto de a comunidade obter –solidária e colectivamente- o dinheiro com o que fazer frente à sacanagem fiscal do Estado –em forma de alcavalas e o serviço de milhons-.

A taberna era também o centro de outra importante instituiçom do que Pegerto Saavedra chama “patriotismo de aldeia ou de paróquia”: O pagamento do seqüestro de gado. Assim descreve em 1777 o Padre González de Ulloa as festas destes “corsários terrestres”: multam “ao seu arbítrio os gados maiores e menores do contrário que passam fora dos limites respectivos. Isto fai-se por entre semana; deposita-se o que se exige, e em chegando o dia festivo o juíz pedaneo junta o concelho, vam à taberna, e ali (…) chegam os donos do gado a desempenhar as prendas que se deram antes para libertarem as reses encurraladas; encontram aos congregados como convidados às vodas de Pirítoo; começam a travar-se de língua e maos…”. O assunto tinha tanto de pragmática vigilância dos pastos e montes comunais quanto de festivo ritual de afirmaçom identitário. A cerimónia exigia certa solenidade, em que os donos do gado tinham que aguantar o tipo entre o escárnio generalizado dos seus vizinhos, às vezes sublinhado polas gaitas burlonas. Mas note-se que o importe de multa nom era destinado a qualquer umha forma de acumulaçom: a “economia moral” exigia convertê-lo imediatamente em festa, vinho e comida para todo o mundo na taberna concelhil.

Cárcere de Topas, 11 de Setembro do 2013.

Artigo publicado en Praza Pública

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Cunqueiro on the road

Carlos C. Varela

Para os pais da Urxa

“Tínhamos o depósito de gasolina quase a zero, o estômago vazio; a bexiga, cheia. A uns vinte e cinco ou trinta quilómetros ao Noroeste de Brattleboro, paramos almorçar num péssimo restaurante de estrada chamado Dot’s. COMIDA E GASOLINA, diziam acertadamente uns letreiros na cuneta e aquela foi a ordem na que decidimos satisfazer as nossas necessidades”. Com só estas poucas linhas Paul Auster chanta-nos perante um mundo, o do “taylorismo gastronómico” como lhe chama C. Fischler, que é cada vez mais o nosso. Da “comida boa para pensar” ao “repor o depósito”.

No alimento galego arremoinhava-se todo um mundo. Do pam, alimento por antonomásia, conhece-se toda a sua vida e processo. Numha relaçom de reciprocidade generalizada (“Touporroutou, para que é o caldo? / Touporroutou, para dar-lho aos homens / Touporroutou, para que som os homens? / Touporroutou, para sachar no milho”), o pam é um contra-dom da natureza só após ser generosamente regado com o suor da gente. Sementam-se os campos de pam, segam-se, malham-se, limpam-se, amassam-se e cozem-se, nom sem antes fazer-lhe umha cruz para desgosto dos cregos e o seu monopólio do mágico. O neno nom sai da casa sem um anaquinho de pam no peto como defesa simbólica, e se comendo cai um anaco ao chao (e, ai! Se isso passa em casa alheia) dá-se-lhe um beijinho antes de comê-lo ou bota-se no lume da lareira para os defuntinhos. Nos antípodas de puritanismos protestantes, cristianizamo-nos porque nos permitírom um Deus que se pode comer.

Nas escassas zonas micófilas do país, a gente desafia a ordem do mundo botando-lhe o dente ao pam de cóbrega, de sapo ou de raposa, enfim, pam do demo, que se asa sobre as brasas da lareira. No Dia de Defuntos devora-se a castanha em rosários de zonchos com a fé, observou Swinburne, viajeiro inglês do s. XVIII, “de que cada umha livrasse umha alma no purgatório”. Símbolo de eternidade em tanto que fruto dumha mui longeva árvore, a castanha no Magusto “além dum prazer, -explica Mariño Ferro-, equivale a umha manifestaçom pública de fé na vida eterna”. E que vamos dizer da matança do porco! Afirmaçom festiva perante a Spánia moura…

Comemos o mundo porque nos constitui comendo-o, enquanto o capitalismo come o que nos constitui. Come, literalmente, marcos, como demonstrou o famoso experimento neurológico no que a mesma bebida, se leva etiqueta de marca, sabe “objectivamente” melhor que sem ela. No fast-food de gasolina e comida, “o alimento –laia-se Fischer- converte-se num objecto sem história conhecida”; dele é emblema, com essa carne picada susceptível de todas as suspeitas, a hamburguesa. A labrega galega, pola contra, conhece a história do seu alimento como a das suas crianças. É como a tia Francisca de Proust, que na casa de Cambray, perguntava pola origem duns espárragos que levava a vizinha numha cesta, como quem pergunta por um vizinho novo, pois “nom os conhecia em absoluto” e nunca se saudaram.

Pobre dum Cunqueiro abandonado num desses cenários que pintou Edward Hopper alambicando-lhe umha poesia impossível para um labrego. À porta do Dot’s dom Álvaro havia pegar volta para procurar assento nas ervas da cuneta. De tê-lo, tiraria do peto um anaco de pam para acompanhar umhas cereijas, como ele gostava; e senom poda que apanhasse umhas amoras ou uns arandos. Nesses silêncios de estrada, entre ruidosas vírgulas de camiom e camiom, ainda lhe havia parolar com algum melro sobre pêras orracas, as personagens de Miranda, ou de quando a comida era comida, os automóveis cavalos, e os americanos índios. Quando ainda tínhamos i(n)dioma para comê-lo.

Cárcere de Topas, 10 de Setembro de 2013.

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Artigo publicado en Sermos Galiza