Etnologia da Audiência Nacional

Carlos C. Varela

“…o problema do pessoal é encontrar

umha culpa ajeitada ao castigo”.

ERVING GOFFMAN

A justiça mostra-se como umha formalizaçom máxima, como umha asséptica lógica do bem e do mal. A sua linguagem, intencionadamente esotérica, visa reduzir a complexidade dos factos a umha equaçom da que poder tirar um resultado matemático. Umha sentença é um solene resultado final do que se foram apagando todas as rectificaçons e aproximaçons prévias. Mas como di Bourdieu, há “umha eficácia propriamente simbólica da forma. A violência simbólica, cuja realizaçom por excelência é sem dúvida o direito, é umha violência que se exerce, se pode dizer-se, nas formas, pondo formas” (1). Logo há que baixar à produçom –nom formal- dessas formas, à construçom das verdades jurídicas. Sem entrar na cozinha do “Estado de direito” é impossível compreender o seu funcionamento.

A construçom do culpável começa muito antes das detençons. Esse “motor imóvel” que é umha ideia completamente anti-democrática de “Espanha”, pom continuamente em marcha umha cadeia de tautologias “de “porque-sim”) que cria e envolve os seus inimigos, que som, por definiçom, “organizaçons criminais”.

Santiago Alba Rico explica bem o processo, que “é tam singelo como infalível. Porque pertencer a umha ‘organizaçom criminal’ é em si mesmo um delito, mas à sua vez esse delito converte em delito –ou polo menos em prova- qualquer prática quotidiana, por inocente que seja”. A cadeia de tautologias, como umha catedral de palavras que abóia no ar, continua em prisom: os presos independentistas som FIES, polo tanto perigosos, polo tanto aplica-se-lhes o regime de primeiro grau. Mas por que som perigosos? Porque som FIES. E por que som FIES? Porque som perigosos. Desta presunçom de culpabilidade, os lógicos do Ministério do Interior pedem umha saída através da desvinculaçom das “ordens da organizaçom”. Mas… e se nom houver “ordens” nem “organizaçom”? É o que Karl Popper chamaria um caso de enunciado nom-falsável, e polo tanto impossível de refutar. Esta forma de magia jurídica aplica-se ainda com mais sanha aos presos –supostamente- islamistas: só podem aceder a um regime carcerário “normal” se se reconhecerem como “culpáveis”.

Mas voltemos ao principio, a um detido em regime de incomunicaçom. Ali, a alquimia social do direito continua a trabalhar: a violência de obrigar alguém a ficar despido diante dumha forense acompanhada de vários encarapuçados armados transforma-se em “prevençom da tortura”; os papéis assinados baixo coacçons e torturas em “declaraçons voluntárias”; e assim sucessivamente. O que na terminologia de Garfinkel som “cerimónias de degradaçom”, vam-se sedimentando no corpo do detido enquanto “o culpável” vai tomando forma. Esse ângulo morto do Estado de direito espanhol que suponhem os até cinco dias de detençom incomunicada –que nom é outra cousa que a institucionalizaçom da tortura (2)- dá suficiente margem para a construçom do culpável. Umha vez pronto, será subido (na Audiência Nacional o simbolismo dos espaços é transparente) perante o escritório do juiz para encetar a misse en scéne do “Estado de direito”. Do baixo, o inferno da produçom das formas, as masmorras subterrâneas e os maus tratos, ao piso superior, a luz, os juízes e as cortesias formais. Como elemento de transiçom, a polícia, cuja posiçom estrutural é a mesma que a analisada por Foucault a propósito do carrasco: “No seu enfrentamento com o condenado, o carrasco era em certo modo como o campeom do rei. Campeom porém inconfessável e nom reconhecido: segundo a tradiçom, parece ser, quando se tinham selado as credenciais do carrasco, nom se punham sobre a mesa senom que se deitavam no chao. Conhecidos som todos os interditos que rodeavam aquele ‘ofício mui necessário’ e, porém, ‘contra natura’. Por mais que, em certo sentido, fosse a espada justiceira do rei, o carrasco compartia com o seu adversário a sua infâmia. O poder soberano que lhe ordenava matar e que por meio dele matava, nom estava presente no carrasco; este poder nom se identificava com o seu escarnecimento”. (3).

O detido aparece para declarar com a sujidade de cinco dias sem se lavar nem descansar. Tiram-lhe os cordons dos sapatos e o cinto das calças que arrasta. É o resultado da longa sessom de maquilhagem do culpável. Assim apresentado e desumanizado, o assunto penal já nom é nem de “tratamento terapêutico” de reinserçom social e toda essa metodologia senom mais bem –como ironizou Loïc Wacquant- de tratamento de resíduos. (Recordava o ex-preso independentista Manuel Quintáns as palavras do director do cárcere Modelo de Barcelona em 1941: “Tendes que saber que um preso é a dezmilionéssima parte dumha merda”).

Perante ele, os juízes e fiscais vestem com o uniforme dos justos. Com eles toda essa panóplia de cadeiras hierarquizadas, papéis timbrados e linguagens fossilizadas, que nom estám aí senom –dizia Foucault- para provarem a inocência do próprio tribunal. Finalmente, “os juízes nom esperam que o acusado impugne umha tese, e menos ainda que refute factos; solicitam-lhe que corrobore um sistema do qual somente possuem um fragmento, e cuja totalidade querem que o acusado reconstrua de forma apropriada (…) porque, antes do que reprimir um crime, os juízes procuram (…) certificarem a realidade do sistema que o fijo possível (4), o moto imóvel, o seu Estado espanhol.

Enfrente, a justiça em mao-comum, rosaliana. A “justiça de carvalheira” e o “exército de árvores”. A única que sempre tivérom as que, como o labrega do quadrinho de Castelao, pedem a Deus “que nos libre da xusticia”.

NOTAS

  1. P. Bourdieu, Cosas dichas, Buenos Aires, 1988, p. 90
  2. Também através, por certo, da nom-falseabilidade. A tortura  é estrutural porque criárom um espaço de impunidade –também lógico- no que é impossível demonstrar nada. Destruem –por dizê-lo doutro jeito- o marco lógico que permitiría verificar a existencia de torturas.
  3. M. Foucault, Vigilar y castigar, Madrid, Siglo XIX, 1994 (1975). P. 58.
  4. C. Lévi-Strauss, “El hechicero y su magia”, Antropología estructural, Buenos Aires, Eudeba, p. 157. Que Lévi-Strauss fale do povo zúnhi, e nom do Estado español, é algo impossível de distinguis neste fragmento.

Noite Boa de 2013, Terra Ancha.

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Poema para uma estrela

(Para um desenho do Carlos Calvo)

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Uma estrela verde pintada
numa folha de quadrinhos escolares
com cheiro a bosque e a liberdade

As palavras: borboletas soltas pela folha
como frutas silvestres orvalhadas
ou como se chovesse lágrimas

A estrela vermelha já nem se atreve
roubam de nós o céu e as mãos da vida
roubam de nós a voz da esperança
concharousia
Sugam-nos a seiva que tanto precisamos
para cuspi-la no chão sem sequer saborear

Com arrogante desprezo por sermos
Matam-nos sem sentir como dói a nossa dor

Mas nós acharemos a cura para sua mordida
acharemos o antídoto para seu veneno

Nos temos a nossa Estrela verde
para semear na Terra a esperança

 Concha Rousia 26,1,14

Mulheres, esfolhas e repúblicas concelhis

Carlos C. Varela

“… é un asunto de dereito consuetudinario

que non ten nada que ver nin co código

civil dos españois nin coa política”.

M. MANDIANES CASTRO (1)

Queixava-se Manuel António nos anos vinte do esmorecimento da indústria dos prateiros de Padrão, “mais cada vez que atopo a un d’os operarios que aínda a siguen, eu penso ver un rezagado d’o século, medio artesán e medio artista, según quería a vella arela, que teima defender n-os nossos tempos os derradeiros esteos d’unha conceición mais humán e dinificadora d’o traballo e que houbera merecido o cordial aludo d’a santa palabra de Mathma Gandhi”. (2)

Não abundam na nossa Terra as referências ao independentista indiano, cuja luta desobediente se reduz muitas vezes à sua versão sloganizada. Ainda, procura-se paradoxalmente nele uma justificação de passividade, quando era um homem que assegurava que “existe um mal que é pior que a violencia: a covardia”. Para mudar isto, recentemente Joám Evans Pim (3) recordou a aposta de Gandhi num soberanismo integral, relacionando as incessáveis fiandeiras indianas que desafiaram o Império Britânico com a democracia paroquial galega. As fiadas organizadas na Galiza polas mulheres, e outros trabalhos-diversões colectivos como as esfolhas, foram umha fonte inesgotável de criatividade popular: músicas e danças, cantigas, desafios, adivinhas, jogos, contos… E também –como observou Nicolás Tenorio nas de Viana do Bolo- espaços de acertados debates e deliberações sobre os assuntos comunais.

Todo isto fez que o poder visse os fiadeiros como uma intensidade autónoma perigosa que devia diluir. A antologia dos documentos desta repressão é inesgotável: começam no s. XVI nos sínodos de todos os bispados galegos e só se detêm a meados do s. XX, quando se deixa de cultivar o linho. As autoridades criticavam sobretudo que o linho dava “demasiada” autonomia económica às mulheres que, alias, eram as que organizavam e controlavam os fiandeiros como um espaço festivo e promíscuo. “Ayuntamiento de sexos”, “juntas infernales”, “diaboli festum”… todo o repertório do imaginário do aquelarre era mobilizado contra a autonomia das fiandeiras.

Um dos agentes desta repressão foram os jesuítas, que gostavam de comparar o Reino de Galiza com as colónias de América. Sobre estes indígenas de aqém-mar escreverá Pedro González de Ulloa todo um involuntário programa político: “uno por uno son afables y dóciles; en comunidad, suevos; capitaneados, ostrogodos y a pelotones, portugueses, con quienes confinan”. Nesse mesmo livro, aponta acerca dos fiandeiros que ele próprio perseguia:

“El comercio del otro sexo es comúnmente con lino, que benefician y venden en rama o en tela. Es laborioso sin duda, pero útil, si a esto no se le añadiese muchísimo de delincuente. Guardo silencio por decoro debido a las señoritas mujeres”. (4)

O clero compostelano não se conterá tanto, e na sua condena das fiadas vê-se bem como consideravam tão perigosa e autonomia sexual das mulheres quanto a económica:

“en muchas partes convocan las madres de familia a otras mujeres por la mayor parte solteras, y a que las más licenciosas concurren en mayor número y con más prontitud y gusto, no tanto por hilar cuanto por ejecutar más libremente, llegando la noche, sus peligrosas deshiladas, porque a este tiempo concurren los jóvenes, particularmente aquellos que con alguna o algunas tiene amores peligrosos o acaso perniciosos a la honra y conciencia de unos y otros”. (5).

A esta pequena indústria rural soma-se, entre os homens, uma forte emigração atlântica e o recrutamento forçoso para as guerras espanholas, de modo que a meados do s. XVIII por volta de 15% dos fogares do noroeste galego estavam geridos por mulheres solteiras. Nesse contexto emerge entre o poder na Galiza a ideia disso que Foucault chamou o “grande encerro”, a proletarização forçosa das mulheres que não estivessem sob o controlo de alguma autoridade masculina. Em Návia de Suarna, por exemplo, entre 1793 e 1804 foram levadas perante os tribunais 41 moças; “siendo justo que el pueblo se exterminase de mujeres de tan relajada conducta”, lê-se na condena ao desterro de Rosa Díaz (6). Se o grande encerro não foi mais adiante foi, entre outros fatores, polo dessinteresse das autoridades locais, que ignoravam os mandatos estatais e da Igreja. Ninguém dissolve os fiandeiros, e a Diócese de Santiago queixa-se de que “tales excesos crecían con la indolencia de las justicias, que toleraban en las repúblicas concejiles”. (7)

***

Parece que há relação entre a autonomia feminina e a democracia paroquial. Contudo, os concelhos abertos eram território de homens. No concelho aberto de Pedrafita do Zebreiro participavam assim: “Se estám ele e ela, vai ele; se esta a mãe e um filho de 17 ou 15 anos, ou mais, vai o filho. Se só está ela, vai ela”, explicava o pedáneo da época. (8). A tarefa de representação tomava-o o homem da casa, mas pode que os fiandeiros fossem um espaço onde elaborar a influência das mulheres nos assuntos públicos. Em todo caso, de que se falaria nessas repúblicas concelhis? Iriam além dos assuntos meramente locais?

Não há documentos nem atas dessa democracia oral –polo menos dos concelhos mais recentes-, mas há lembranças. Por fortuna Manuel Garcia Barros ‘Ken Keirades’ tivo a ideia, na sua não declarada autobiografia, de reproduzir uma conversa durante uma esfola na sua casa de Berres, a começos de s. XX.

Falam o seu pai e uns vizinhos, e é uma testemunha impagável. Tratam das eleições, do Estado ‘providência’, da guerra, do cárcere… É longa de mais para reproduzir aqui completa, mas paga a pena citar algum trechinho, com a certeza de que é bem mais profunda do que qualquer sessão do parlamentinho (é sabido que o trabalho manual ajuda a pensar). Mas deixemos que o Mingos tome a palavra:

“As eleucións tal e como se veñen facendo, son unha farsa noxenta (…). A nosoutros póñennos aquí a pelexar, e arriba enténdense os uns cos outros, e pra nós a conta é sempre a mesma: pagar. Eu iría a votar de moi boa gana, pro non por Xan nin por Pedro, senón por botalos abaixo a todos. ¿Para qué nos sirven a nosoutros os gobernos? Non vexo pra qué, non sendo pra quitarnos os cartos.

(…) Se se desfán os camiños, nosoutros temos que arranxalos; se desmora unha fonte, nosoutros temos que poñela a avío: lavadeiros temos os que nós puxemos”.

Os labregos de Berres (na Estrada) ainda não conheceram a “incompetência planificada”, e não cientes das suas capacidades. O seu apartidismo não tem nada a ver com o apoliticismo reacionário: é rebelde. Continuam a debater se o Estado dá realmente em serviços (justiça, ensino…) tanto como rouba em impostos às classes trabalhadoras, e de aí passam a questionar o militarismo patrioteiro:

“En canto ó Exército, eu non sei se será unha cousa necesaria. Dícennos que é para defender a patria. Pro iso da patria segúraseme unha cousa algo  confusa, e hai muitos que pensan que a patria son eles. A patria, din os libros de escola, é a terra onde nacemos, e coido que non está mal dito. Mais o que eu vexo é que moitos o que queren é chupar dela; e cando nos arrincan os fillos para defender á patria, non é máis que para defender os privilexios de uns e as bicocas dos outros. Aí estamos coisa guerra de Marrocos, que enxamáis se acaba, sacrificando homes e diñeiro que non ten traza”.

Resolvem que ir votar ou não é o de menos, pois só eles próprios, auto-organizando-se, poderão lavrar uma Terra Livre. Vão mais lá do conhecido “libertarismo espontáneo” galego, meramente reactivo, e propõem ideias concretas, mesmo atacando a indignidade do cárcere:

“o importante é que os labradores señan sociedades en cada parroquia, para se defenderen e tratar de arranxar os seus asuntos, sin depender de caciques nin da sua culimaia, como teño escoitado que se fai noutras partes do mundo. (…)

O mellor sería –di Mingos- que non nos disen nada, pro que tampouco nolo pedirán. Que nos deixen en pas, que xa nos arreglaríamos, pola conta que nos tiña.

-Eu xa tiña pensado niso –diso o Lourenzo-, e coido que non debía  haber máis que parroquias, con libertade de poder axuntarse en federacións, ou como millor visen, conservando cada unha o seu ser.

-Todo iso é moi bonito –ouservóu o Xorxe-, mais eu non sei cómo resultará a cousa. Esquencedes que somos de mala condición para nos levar ben uns cos outros, e sin autoridade, a máis de que tampouco estamos preparados.

-Sí –contestou Mingos-. Somos de mala condición, e inorantes, pro somos como nos fan. Asústannos con todo, facéndonos vivir apouquentados. Diste xeito fanse escravos, servos, xente amergurada, pro non se fai xente boa e útil. A xente faise espelida e boa con educación e convencimento, non con ameazas. E algún que se fuxise da razón, xa buscaríamos maneira de facelo voltar ó rego, sin necesidade de cárceres; a nosa xustiza asegúrovos eu que había ser máis xusta que esa que se nos fai escrebindo nos papés”. (9)

Terra Ancha, 5 de dezembro de 2013

P.S: Cousas da telepatia carcerária, poucos minutos depois de rematar este artigo chegou-me um feixinho de cantigas medievais de parte de Ernesto Vázquez Souza, sobre os concelhos: os urbanos e controlados e os abertos e democráticos. Destaca uma de Pero de Armea que, embora seja de escárnio, retrata uma mulher a falar na assembleia:
“Vós andades dizend’em concelho

Que sobre todas parescedes bem;

E com tod’esto, nom vos vej’eu rem, (…)”

Depois de tudo, não é o mesmo temor masculino perante a mulher pública que está trás a perseguição dos fiadeiros? Primeiro a retórica da mulher falangueira, depois a do aquelarre.

NOTAS

  1. M. Mandianes, O río do esquecemento, Vigo, Xerais, 2003, p. 174
  2. Manuel Antonio, “Cousas de Padrón”, Galicia, 12/4/1925
  3. J. Evans Pim, “Gandhi na eira”. O Golpe. Revista de Pensamento Arredista, nº 2.
  4. P. González de Ulloa, Descripción de los estados de la casa de Monterrey en Galicia, Madrid, CSIC, p. 28.
  5. Arquivo Diocesal de Santiago, Sínodos, 1730, leg. 1214.
  6. P. Saavedra, La vida cotidiana en la Galicia del Antiguo Régimen, Barcelona, Crítica, 1994, pp. 252-256
  7. Arquivo Diocesal de Santiago, Sínodos, 1740, leg. 1215.
  8. C. Lisón Tolosana, Antropología Cultural de Galicia, Madrid, Siglo XXI, 1974 (2ª edición), p. 116-117. Há abundante informação sobre o concelho abertro até os anos 60 nas páginas 56-58 e 113-123.
  9. M. García Barros, Aventuras de Alberte Quiñói, Vigo, Castrelos, 1976 (2ª ed), PP. 231-243

(Artigo publicado en Praza)

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Frutos selvagens

Carlos C. Varela

Mui pouco se tenhem apreciado na Galiza os frutos selvagens, sobretodo em comparaçom com outros países europeus como a França ou Alemanha. Talvez porque a nossa tardia e raquítica industrializaçom nos deixasse a meio caminho nessa viagem de ida e volta, que começa distinguindo-se da rarália para posteriormente ré-apropriar-se dela para os novos usos burgueses. Amoras, arandos ou morangos foram considerados apenas como umha espécie de comida-brinquedo para crianças, à par das filhoas de courelos ou os caldos de saramagos. E ainda, amiúde desconsiderados por alguns adultos que lhes chamavam “comida dos lagartos”. Aparecem, porém, como presente nos encontros eróticos: “amorinhas das silveiras, que eu lhe dava ao meu amor”, cantava Rosalia. Alimentaçom selvagem própria desse topos do erotismo tradicional que, desde Tristám e Iseu, coloca o amor à margem da civilizaçom. Na floresta de Morrois que vam comer os namorados senom amoras e arandos? Mesmo se intensificam as ressonâncias em lugares como Boaço, onde a ir “às moças” lhe diziam “amorear”. Prazer infantil ou de moceio, os frutos selvagens só entram na mesa adulta através do sabor grave e masculinizante do álcool: licores de guindas, de abrunhos…

Se o gosto, junto com o tacto e o olfacto, é relegado ao mais fundo da hierarquia dos procedimentos legítimos de saber; os frutos selvagens correm parelha sorte na hierarquia culinária: estám mais a carom da alimentaçom dos animais do que das pessoas. E, porém, com este humilde saber-sabor escreveu H. D. Thoreau estas formosíssimas linhas, de grande calado filosófico: “Os frutos nom proporcionam o seu verdadeiro sabor a quem os compra nem a quem os cultiva para o mercado. Só há um meio de obtê-lo, mas poucos o empregam. Se quigerdes conhecer o sabor das gaiubas, perguntai ao vaqueiro ou à perdiz. É um erro vulgar supor que tendes provado as gaiubas senom as tendes recolhido. Umha gaiuba nom  chega nunca a Boston; ali nom as voltárom ver desde que cresciam nos seus três outeiros. À parte da ambrosia, o essencial do fruto perde-se com a pelugem desprendida com o roce no carro do mercado, e os frutos convertem-se em provisons”.

No ventre de madeira da sua cabana à beira do lago Walden, H. D. Thoureau adverte contra um dos paradoxos fundacionais da Modernidade: a pretensom impossível de comprar um dom. A sociedade inteira, no capitalismo, converteu-se nessa criança das Confissons de Rousseau: pobre e tristeiro, levava dias a fitar para o escaparate dumha pastelaria até que, um dia, umha senhora lhe dá umhas moedas para que “merques o que queiras”. O neno, desconsolado, botou a chorar. Ele o que queria era que lhe regalassem um pastel. Enquanto se pretende solucionar essa frustraçom generalizada através de supermercados de dons e software da graça, o poço afunda-se mais e mais. Só admite ao jeito de Kraus, umha saída práctica e cheia de silêncio. Entretanto, na Silveira dalgum bosque, há-de estar-se rindo Thoreau com a boca manchada de amoras. “Já vos dixem que nunca, jamais, poderedes mercar umha gaiuba”.

28/10/2013

Artigo publicado no Sermos Galiza

flo

Obrigadxs por todo e que o 2014 seja bom!

nadal

“Compreendimos que viver é ser livres…
Que ter amigxs é necessário…
Que lutar é manter-se vivxs…
Que pra ser feliz basta querer…
Aprendimos que o tempo cura…
Que magoa passa…
Que decepção não mata…
Que hoje é reflexo de ontem…
Compreendimos que podemos chorar sem derramar lagrimas…
Que a verdadeira familia permanece…
Que dor fortalece…
Que vencer engrandece…
Aprendimos que sonhar não é fantasiar…
Que pra sorrir tem que fazer alguém sorrir…
Que a beleza não está no que vemos, e sim no que sentimos…
Que o valor está na força da conquista…
Compreendimos que as palavras tem força…
Que fazer é melhor que falar…
Que o olhar não mente…
Que viver é aprender com os erros…
Que o melhor é ser nós mesmos”