Carlos C. Varela
O conjunto artístico dos petroglifos do Grupo Galaico é a principal porta de acesso que temos às ideologías e relações de poder da Pré-História Recente; pedras semantizadas de forma que não representam tanto uma ideia realista da sociedade quanto um desejo de naturalizar uns determinados principios de visão e divisão da mesma, impostos polos grupos dominantes. Analisados da perspetiva de género, os petroglifos de temática naturalista do Grupo Galaico revelam-se como uma grande narração coral da nova masculinidade emergente no III milenio AEC, no contexto dum nascente processo de diferenciação e estratificação social –embora uma série de dispositivos, isso que Pierre Clastres chamou “a sociedade contra o estado”, conseguiu conjurar até os albores da conquista romana a cristalização de formas complexas e hierarquizadas de controlo político. Hodder descreve esta época, entre o Neolítico Final e as primeiras fases da Idade do Bronze, como marcada em muitas partes da Europa Ocidental por uma crise do comunal e o novo ênfase no individualismo masculino, belicoso e caçador. Ou seja, a visão do mundo que consagra o Grupo Galaico, obviando radicalmente o mundo feminino, quotidiano, recoletor e agropastoril. Assim os petroglifos, com as suas panoplias de armamento guerreiro e as cenas de caça de cérvidos hipermasculinizados, veiculam os discursos da nova masculinidade, em uma sociedade menos igualitária e mais violenta que a anterior.
Díaz Andreu quijo atalhar estas leituras de género achegando algumas evidencias da participação feminina nos trabalhos cinegéticos, e também denunciando uma asignação apriorística das armas aos homens. Contudo, o registo arqueológico associa claramente as armas, aos varões, e a possível participação das mulheres na caça não resta –a contrário- significancia à sua ausencia nas caçadas dos petroglifos. Por sua parte, a antropóloga Eleanor Leacock tem sinalado como nas sociedades coletoras-caçadoras contemporáneas a divisão sexual do trabalho nem sempre é sinónimo de desigualdade de género, sendo simplesmente um reparto de tarefas que teriam um valor social parecido. Seria a etnografia feita polos homens ocidentais, atrapados nos seus próprios mitos masculinos, a que axageraria a importância da caça masculina face a recoleção feminina. Mas os petróglifos não foram gravados polos arqueólogos da modernidade patriarcal, senão por pessoas da própria tribo, e as representações da socieade que fam, mui sesgadas quanto ao género, são inteiramente suas.
O CERVO E O HOMEM: MASCULINIDADES RIVAIS
Onde os petroglifos mostram uma economia masculina da caça, as evidencias arqueológicas apresentam mais bem uma sociedade agropastorial com recoleção e pouca caça. No NW peninsular cultivavam-se cereais, leguminosas e brássicas; recoletavam-se landras e avelãs; e pastoreava-se um gado do qual até se aproveitavam produtos secundários como os derivados lácteos. Mas toda esta base económica está completamente ausente no Grupo Galaico, a diferença do resto da arte rupestre europeia, onde sim representam cenas agrícolas e ganadeiras, assim como de recoleção de frutos selvagem ou mel. Enfim, concluem Antonio de la Peña Santos e José Manuel Rey García, “nos petroglifos galaicos non parece que se tratase de reflectir a base subsistencial dos grupos humanos que os gravaron”.
Sobrerrepresenta-se a caça e, ainda, uma caça mui concreta: de igual maneira que se invisibiliza a fauna domêstica –abundavam ovicápridos, bóvidos e suídos-, tampouco se representa a caça menor. Só interessa a caça de grandes machos cérvidos, animais detentores nos petroglifos dum valor simbólico mui superior ao seu rendimento económico. Os petroglifos não são ilustrações etológicas realistas, neles aparecem grandes mandas de machos quando, na realidade, estes vivem sós todo o ano, menos quando na época de zelo formam grupos de fêmeas que defendem doutros machos. Há, pois, uma representação masculinizada da realidade e uma hipersexualização dos machos, desenhados com pénis e cornamentas desproporcionados. Igual que sucede com as figuras antropomorfas, as zoomórficas, quando sexuadas, são sempre machos –com a única exceção de fêmeas copulando ou com um macho que lhe olfateia os genitais. As imagens de machos em zelo, como o espetacular cervo que brama laje da Rotea de Mendo (Campo Lameiro), São representações apoteósicas das masculinidade, e são estes machos, precisamente, os que contra toda lógica aparecem caçados polos homens. Contra toda lógica porque, tal e como explica Richard Bradley, a caça nas sociedades primitivas obedece a uma racionalidade sustentável: abatem-se de preferencia machos jovens ou fêmeas velhas, para garantir a reprodução.
Pierre Bourdieu tem explicado as rituais de passagem, em que os moços de muitas culturas se convertem em homens, como uma operação social que, subretudo, marca a diferença entre os moços/homens que passam o rito e as moças/mulheres que não. A caça dos petroglifos, completamente afastada da caça real, parece um mito masculino, a representação de duas masculinidades rivais –a do homem e a do cervo- que, porém, no seu espetacular enfrontamento ocultam a principal oposição estrutural: a que fam entre o mundo masculino representado e o não representado mundo feminino. Os homens caçam grandes cervos machos para exaltar a sua própria virilidade: é uma caça mítica. No célebre estudo de Godelier sobre a produção de Grandes Homens no povo Baruya, a caça revela-se como uma atividade exclusivamente masculina, cuja importância não se justifica polo valor alimentício mas polo seu valor ritual na produção de chefes e na reprodução da dominação masculina. Será este o caso galaico?
O FETICHISMO DAS ARMAS
Para uma análise das armas dos petroglifos em chave de género é interessante ter em conta uma advertencia prévia de Comendador Rey: nas ilustrações académicas as armas aparecem deitadas longitudinalmente no seu eixo mais longo, como passivas ou “mortas”; mas sobre o terreno foram gravadas com uma conceção dinámica –dir-se-ia que “viril”- e em orientação orgánica, isto é: com a ponta cara riba. Apontado isto, as armas dos petroglifos oferecem dados relevantes se as cotejarmos com os restos arqueológicos de armas reais. Em primeiro lugar, entre o instrumental metálico representado nunca –ou case nunca- aparecem úteis quotidianos como as machadas, senão armas que funcionavam como emblemas masculinos de estatus social: espadas, punhais, alabaudas e escudos. As investigações que quantificaram a desproporção entre as armas reais encontradas e as suas reproduções em pedra, sinalam que enquanto as utilitárias machadas supõem 50% dos úteis encontrados mas não se representam nunca nos petroglifos, as espadas e punhais, sendos ó 20% dos achádegos, são representadas em 50% dos petroglifos de instrumentos.
Em segundo lugar, os petroglifos magnificam as armas da mesma maneira que cornamentas e pénis: o tamaño médio das armas em pedra é 2’56 vezes maior ao das armas reais: proporção superior no caso das espadas: 47 cm de longitude máxima real face 240 cm que atingem em algum petroglifo. Na Pedra das Ferraduras (Cotobade) um homem sustém um escudo e uma espada que é quatro vezes mais grande que ele. Além da desproporção, os petroglifos de armas realizaram-se de preferência em pedras mais verticais do que as escolhidas para outros desenhos. Espetaculares rochas-panóplia como a do Castrinho de Conxo evidenciam a perspectiva privilegiada em que se gravaram os petróglifos de armas.
A associação entre as espadas e o poder masculino é, a pesar das objeções de Díaz Andreu, um fenómeno cultural praticamente universal. Ainda, as espadas costumaram usar-se como símbolo do pénis: lá onde há sociedades patriarcais armadas surgem conceções cinegéticas ou bélicas do sexo. Leroi-Gourhan, pioneiro na interpretação sexual de arte rupestre europeia, admiraria-se de saber que nos cárcere espanhóis dos presos que vão armados com facas artesanais di-se que vão “ampalmados”, e se cortam alguém di-se que lhe abriu um “chocho”. Como nas caçadas rupestres de cervos.
POST SCRIPTUM
Vários milénios depois, os principios homólogos de visão e divisão que articulavam os petróglifos (masculino/feminino, visível/invisível, vertical/horizontal, poder/trabalho, espetáculo/quotidiano…) continuam bem operativos. Mesmo nos movimentos sociais. Uma olhada aos petróglifos digitais avonda para verificá-lo: enquanto as invisíveis mulheres colam cartezes, revisam textos, cozinham em jantares populares e limpam centros sociais, os visíveis homens continuamos a pegar em microfones e faixas de cabeceira. Aliás, envolvemo-nos em grandes desputas por ver que tem um “-ismo” mais grande, embora nunca se corresponda com qualquer prática real. A política como produção de Grandes Homens, enquanto a mulheres sustentam a vida.
BIBLIOGRAFIA
Bradley, R. (1997) Rock Art and the Prehistoria of Atlantic Europe. Signing th Land. Londres/Nova Iorque: Routledge.
Comendador Rey, B. (1997) “Las representaciones de armas y sus correlates mecánicos”. Em: Costas Goberna, F. J. e J. M. Hidalgo Cuñarro (Coords.). Los motivos de fauna y armas en los grabados prehistóricos del continente europeo. Vigo: Asociación Arqueológica Viguesa, PP. 113-130-
Godelier, M. (1986). La producción de Grandes Hombres. Poder y dominación masculina entre los Baruya de Nueva Guinea. Madrid: Akal.
Hodder, I. (1990). The domestication of Europe: Structure and contingency in Neolithic societies. Oxford: Basil Blackwell Ltd.
Leacock, E. (1981). Myths of Male Dominance
Peña Santos, A. de la e J.M.Rey García. (1995). “Gender and Ellas in the Galician Group of rock art”. European Association of Archaecologists, first annual meeting Santiago 1995-Abstracts. Santiago de Compostela, p. 15.
(2001). Petroglifos de Galicia. Oleiros. Vía Láctea.