Biblioteca de Fanto Fantini

Carlos C. Varela

envelope gato

“Trazede-me livros!”, berrava Alexandre Bóveda à sua família agarrado à janela do improvisado cárcere da Normal de Ponte Vedra. Livros contra muros, uma guerra em curso: eis a luta de presas e escritoras –como Irvine Welsh, o autor de Trainspotting, um dos livros de referência de aquém-muros- contra a pretensão do governo britânico de prohibir a introdução de livros nas cadeias; ou o periplo jurídico de Xabier Balerdi, preso político basco, para poder ler um prisão um livro que se vende legalmente na rua, Bortxaren Kontakizunetik, Kontakizunaren bortxara. Mas, que se pode acrescentar sobre a bibliofobia de um Estado fundado nas fogueiras de livros de Granada?

No cárcere de Villabona a ceiva sistemâtica de livros para resistir começou após comprobar o enorme sucesso que tivo entre os presos “sociais” o livro de Owen Jones traduzido ao espanhol como Chavs. La demonización de la clase obrera. Essa foi a mugica. Depois, uma carta à editorial madrilenha Capitán Swing, como quem lança uma garrafa ao mar: “enviades-nos livros como o de Owen Jones?”. E a mensagem engarrafada, atirada desde o arquipélago penitenciário, cruzou o oceano de betão e obtivo resposta amiga. Desde começos de ano a nossa biblioteca invisível recebe novos livros-ferramenta: um novo exemplar do Chavs; Los filántropos en harapos de Robert Tressell, elogiado por Orwell como o grande romance do proletariado britânico, e que leu em primeiro lugar um rapaz de ideias claras (um dia apresentou-se no pátio: “meu avô era máquis e matou-no a Guarda Civil; meu pai participou de guaje nas greves mineira dos anos 1960; ti és dos meus”); o demoledor livro de Matt Taibbi, La brecha. La injusticia en la era de las grandes desigualdades económicas; Espectros del capitalismo de Arundhati Roy, a quem precisamente o alunado do Rosalía de Castro de Compostela vem de outorgar o seu premio Bento de Spinoza; Malcolm X, una autobiografía contada por Alex Haley, junto com El caso Tuláyev de Víctor Serge e La historia falsa y otros escritos de Luciano Canfora, conforman finalmente uma boa trilogia carcerária: a cadeia como tomada de consciência, em Malcolm X; os presos revolucionários das purgas da URSS em Serge; e a terrível briga de Gramsci no cárcere contra quem pretendiam relegá-lo ao silêncio das estátuas no ensaio de Canfora.

Muitas graças à Capitán Swing.

Cárcere de Villabona, 21 de junho de 2017

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Para Proxecto Cárcere. jailART

Carlos envía desde Topas este desenho para participar na convocatoria de arte postal realizada polos compañeiros de Proxecto Cárcere, dentro da campaña impulsada para que a antiga prisión da Coruña se convirta nun Centro Sociocultural Autoxestionado.

Como os tempos e xestións dentro das cadeas son moi lentos, aínda recibimos hoxe o desenho e chega moi fóra de prazo… Esperamos que poidan incluilo nas exposicións de divulgación do proxecto. Encamiñado cara a eles vai. Orgullosas de poder participar en tan interesante iniciativa.

bilitroque

Lume en mao-comun

A gente do C.S. A Revolta do Berbês começou no passado Ano Velho a recuperar e investigar a tradiçom do lume novo. A reactivaçom da roda cíclica do tempo tradicional ritualiza-se amiúde com lume. O mais conhecido é o da cacharela de San Joám no solstício de verao, mas também os há no inverno, na estrutura simbólica em que aparece o lume novo, o toro de Natal e o Apalpador, quando a luz vence a noite.

Mais ou menos à mesma hora na que a rapaziada de Vigo prendia os fachos diante do local no que se imprimiu o Cantares Gallegos, no pátio de isolamento do cárcere de Topas um preso espanhol, um basco e um galego, faziam algo parecido. Um pátio de isolamento é, basicamente, um cubículo de cimento. Correndo, tem exactamente dezasseis passos de longo e nove de largo. Correr nele tem pouco de desporto: no melhor dos casos é algo parecido a meditar passando as contas dum rosário, no pior, tem mais semelhanças com um hámster numha rodinha. Os muros som o suficientemente altos como para que só se poda ver o céu e, nalguns casos, através dumha grelha. De dia, e com sorte, pode-se ver algumha águia ou bandas de cegonhas migrando. De noite, o latifúndio das estrelas, ocupado e socializado polos sem terra de todas as prisons do mundo. Mas, sobretodo, um pátio de isolamento é isso: um cubículo, umha geometria despida. A geometria é eterna, perfeita e sem existência no mundo material. Os presos, os corpos, mortais, imperfeitos e molestamente existentes. Simplesmente com sermos, impugnamos a totalidade desta geometria inumana que, paradoxalmente, é incompatível com o seu cometido, como umha ponte que devora rios ou um lápis que repele palavras. Ao cárcere dá-lhe nojo o preso. Estorva-lhe. Por isso os carcereiros costumam responder incomodados com um “¿Qué quieres?” ou “¿Qué te pasa?”. A nossa presença é um erro, umha irrupçom dos corpos imperfeitos tam molesta como as bostas dos cavalos nos desfiles militares.

O patromEra, como dizia, fim-de-ano, e três presos celebravam sem sabê-lo o lume novo. O estremenho marchava em liberdade numha semana, e botando mao dum ritual de purificaçom quase universal, despiu-se da vida velha e prendeu-lhe lume para começar a nova. Un par de sapatilhas fôrom parar ao arame farpado, aumentando um milhadoiro carcerário. Outro, iniciou o fogo, alimentado com partes de sançons penitenciárias e o Stranger on a train de Patricia Highsmith. E assim, queimar um livro foi um acto contra a barbárie: esvaeceu a geometria e deixou passo à parêntese estremecida que todo homem inaugura. Para aquecer o corpo e a alma. De igual jeito que Kant pode admirar o céu estrelado desde a aldeia mais miserável do mundo, a mais humilde cacharela é capaz de condensar a magia dum acontecimento. Umha luz viva e palpitante, que engendra as sombras elogiadas por Tanizaki, os recintos nos que  habita o encontro. Contra a luz fria e omnipresente da modernidade e que tem sempre algo de policial, de bisturi ou foco de vigilância, “um horror para realçar outros horrores”, dixo-lhe Robert Louis Stevenson; e que fai a Alba Rico sonhar com um apagom que “embridará os watios e despirá os astros”, que “apagará Dubai e Nova Iorque e acenderá a Ursa Maior”.

Na política zapatista as maos, “é sabido! som as figuras que costumam tomar os coraçons quando se encontram”. Os símbolos, sym-bolos, som a convergência das pessoas através de um objecto. Isto é, os símbolos som maos, a forma que atinge um encontro, a materializaçom do comum: o mao-comum. O lume, com esse fascínio prometeico, é um símbolo universal, e todos os símbolos tenhem algo de lume, de chama e chamada. Um contentor ardendo numha rua tomada pola polícia é já um calor e umha luz solidária, horizontal e circular –a disposiçom espacial dos iguais- face à luz vertical e ameaçante do helicóptero policial.

Algumhas palavras, velhas e pouco sofisticadas, ainda som como foguinhos. Abrem refúgios na noite e, en vez de iluminar-nos –como fai a luz soberba e cegadora de Deus, a Ilustraçom e outras palavras com maiúsculas- alumam-nos. O justo para encontrar-nos e reconhecer-nos, o mínimo indispensável para un fogar (focolaris) onde cuidar-se e tirar o frio. Palavras, ou foguinhos, como dignidade, terra, a casa da nai, independência…. Para dar-nos as maos e encher as maos de maos, privilégio dos que levamos as maos vazias. Para sermos.

Carlos Calvo Varela. Topas, 6 de Fevereiro 2013